INTRODUÇÃO
O primeiro dever do historiador é dissipar a ilusão
fundadora e finalista que funde o imenso acontecimento, seus atores e seus
herdeiros.
(FURET, 1989, p. 132, grifo nosso).
Nosso percurso, caminha na direção inversa: partimos da história e vamos
em direção ao mito – o modo como o
acontecimento é manipulado pela(s) memória(s) [...] o modo como a memória
se apropria da História para neutralizá-la ou torná-la mito [...] A memória é, portanto, manipulada em nome de
um projeto de futuro no qual o patrimônio cultural serve de caução simbólica.
(MONTERO, 1996,
p. 15, 16, 21 grifo nosso).
Este livro faz parte de uma hexalogia sobre
a formação histórica do Acre, que é composta pelas seguintes obras: A formação da sociedade econômica do Acre: “sangue”
e “lodo” no surto da borracha (1876-1914); A fundação do Acre: uma história
revisada da anexação (fase invasiva, fase militar & fase diplomática); A
epopeia do Acre e a manipulação da história no Movimento Autonomista & na
Frente Popular do Acre); “Acreanidade” e as comemorações cívicas (do Movimento
Autonomista ao Governo da Frente Popular); O discurso fundador do Acre e a
invenção do heroísmo e do patriotismo acriano; e O Acre é do Amazonas! Uma
análise histórico-discursiva dos textos de Rui Barbosa.
Apesar
de ter sido publicado primeiro, este livro é, na verdade, uma continuação de O
Discurso Fundador do Acre, que tem lançamento previsto para o primeiro
semestre de 2016, e que ambiciona estudar as condições de produção do discurso
que inventou a anexação do Acre ao Brasil como um evento épico. É como se este
livro fosse um segundo volume de O Discurso Fundador do Acre, pois enquanto
esse explicará a emergência da manipulação da história operada pelos líderes e
defensores da Questão do Acre, a obra que o leitor tem em mãos analisa a
reprodução dessa “história espetáculo” pelo Movimento Autonomista e pelo
Governo da Frente Popular.
A
reprodução do discurso fundador do Acre pelo establishment acriano foi o
que consagrou a manipulação da história como verdade. Certamente não fizeram
isso gratuitamente, pois da mesma forma que os promotores da “Revolução”
inventaram o discurso do heroísmo e patriotismo acriano para justificar a
nacionalização do Acre, os autonomistas nas décadas de 1900 a 1960 e os
petistas de 1999 até hoje também fizeram e fazem uso político do discurso
histórico para promoverem suas causas, seus partidos, suas lideranças e, acima
de tudo, angariarem a simpatia do povo.
Obviamente
que o discurso fundador sofreu “deslizes de sentido” ao longo do tempo. Todos
aqueles que se disseram seguidores e porta-vozes dos heróis da Idade de Ouro
acabam por atualizar a carga simbólica e mítica dele conforme os interesses em
voga no tempo presente. Tanto os principais líderes do Movimento Autonomista
quanto os da Frente Popular se posicionaram como continuadores da “Revolução
Acriana”. Com isso, incluíram-se na narrativa epopeica, cingindo suas causas
com a mesma aura mítica que envolveu o evento fundador.
Esse
livro, portanto, não tem a pretensão de explicar a origem da manipulação da
história do Acre, pois isso será feito em um livro a parte, o que queremos aqui
é mostrar como essa manipulação ganhou o status de evidência histórica. A
versão da anexação do Acre dada pelos líderes da “Revolução Acriana” poderia
ter sido contestada, afinal, a história contada pelos vencedores sempre está coagida
pelo etnocentrismo e pelo autoelogio. Então, como ela sobreviveu? Por que ela
ainda é hegemônica até hoje, mesmo com todo conhecimento acadêmico que se tem atualmente?
Já
mostramos A formação da Sociedade Econômica do Acre que a fundação do
Acre nada teve de “gloriosa” ou “deificadora”, pelo contrário, foi marcada por
patologias sociais, dentre as quais, a prática regular de crimes. Mesmo assim,
a memória coletiva acriana está povoada por “lembranças” de uma apoteose
inaugural que, na prática, nunca existiu, a não ser nos textos literários e nas
narrativas da história oficial. A versão epopeica sobreviveu porque ela foi a
que melhor se adequou aos interesses do establishment acriano, que
adulterou o passado, para melhor controlar o presente.
Esse
livro evidencia o jogo de interesse que havia entre as lideranças do Movimento
Autonomista e as do Governo da Frente Popular, quando ambos optaram por
incorporar em seus discursos a versão epopeica da história do Acre. Promoveram
festas cívicas, defenderam o acrianismo, inauguraram museus e construíram
monumentos, tudo pautado na manipulação da história.
A
manipulação da história acontece quando se produz, de modo premeditado e
intencional, um equívoco interpretativo de um dado acontecimento com o fim de garantir
alguma vantagem simbólica para uma pessoa, grupo social ou instituição.
Portanto, a manipulação tem a ver com uma postura antiética e desonesta. Ela
não é meramente o produto de uma ação irresponsável, pois há quem produza um
equívoco histórico por incompetência, ignorância, má formação ou negligência no
trato com as fontes. Os exemplos dados neste livro têm a ver com um projeto
político de utilização do passado, que promove determinada causa mediante o
engano ou representação equivocada ou um julgamento inconsequente da história (Cf. BAETS, 2013;
FINLEY, 1989; MACMILLAN, 2010).
O primeiro capítulo trata
da questão teórica que envolve o conceito “manipulação da história”. O segundo estuda
as manipulações da história praticadas pelos líderes do Movimento Autonomista
acriano. Já
o terceiro capítulo analisa as manipulações da história operadas pelos líderes da Frente Popular durante
os primeiros dez anos do governo estadual.
Essa hexalogia
que propomos é uma tentativa de “desacrianizar” a história do Acre, pois ela é
muito ufanista e megalomaníaca. Nela os fatos aparecem “embelezados” a fim de provocar
orgulho coletivo. Precisamos criticar a história oficial de todos os lados para
que, ao final, se tenha uma narrativa mais sincera do que aconteceu. Desejo a
todos uma ótima leitura.
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